Venezuelanos empreendem em Roraima e formam rede de apoio para inserção socioeconômica de migrantes e brasileiros

Armando Cabrera e Luz Mariana deixaram a Venezuela pouco antes da crise e usam seus empreendimentos para empregar estrangeiros e nativos
Foto: Marley Lima

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Da: Josué Ferreira/Johann Barbosa

       Luz Mariana García e Armando Cabrera têm histórias escritas com certa semelhança pelo destino. Ambos são jovens, venezuelanos, deixaram a Venezuela antes da crise social, política e econômica se agravar e encontraram no empreendedorismo a oportunidade do recomeço. Sem perceberem, o tempo trouxe não apenas o reconhecimento de seus esforços com agendas lotadas e estrutura de qualidade para os clientes, mas transformou seus salões de beleza em uma verdadeira rede de apoio para a inserção socioeconômica de estrangeiros e nativos que também precisavam de uma chance para transformarem suas vidas.

         


A história recente da Venezuela é conhecida por todo o mundo. Não é novidade que os migrantes miram principalmente os países da América Latina. O Brasil é a quinta nação que mais recebe venezuelanos (mais de 320 mil), de acordo com a Plataforma R4V, que reúne dados de todas as organizações integrantes da Operação Acolhida. Mesmo após o boom da crise, entre o fim de 2017 e início de 2018, Roraima continua sendo a principal porta de entrada para quem busca saciar a sede, aliviar a fome e depositar esperança num país de língua, cultura e costumes diferentes.

 

Portanto, o intuito desta reportagem não é revisitar a dor de um passado marcado pelo abandono de casas ou horas caminhando descalço até chegar à fronteira Brasil-Venezuela. E, sim, perceber como a garra e a força de vontade de quem migrou foram e ainda são essenciais para a transformação da realidade brasileira, com recorte para o pedaço da Amazônia chamado Roraima. Para isso, Luz e Armando nos permitiram adentrar seus salões e contemplar de perto a mudança que proporcionam para seus familiares, não familiares e brasileiros.

 

Da engenharia metalúrgica para as tesouras e escovas

Armando deixou a Venezuela em 2015 após ouvir do avô que os tempos prósperos do país não iriam durar. As palavras de quem viveu uma vida inteira na terra conhecida pela Isla de Margarita não saíram da cabeça do jovem, que já tinha abandonado a faculdade de Engenharia Metalúrgica e investido no ramo da beleza, que lhe dava retorno financeiro suficiente para viver como sempre sonhou. O conselho do patriarca surtiu um efeito inesperado: ele migrou para o Brasil, apoiando-se numa oportunidade de emprego em um salão e numa amiga que conheceu na Venezuela.

Armando é especialista em cílios, sobrancelhas e micropigmentação.

  “O início foi muito difícil por causa do idioma. Não era nada daquilo que eu esperava. Mas não desisti. Ainda na Venezuela, no início da minha carreira, fiz um curso básico de corte e escova. Mas observei que havia a necessidade de outros serviços, porque me espelhava em outras pessoas e vi que elas se especializavam, participavam de seminários, e eu comecei a fazer isso também. Foi surpreendente e me deu credibilidade. Mas no Brasil foi diferente, era outro mercado. Por isso precisei fazer cursos profissionalizantes, com pessoas que trabalhavam na área, e viajei para o Rio de Janeiro e São Paulo para fazer especializações na área de sobrancelhas e cílios”, conta.


 

Depois de três anos no primeiro salão, o estabelecimento veio à falência. Armando percebeu que no local tinha conquistado um enorme número de clientes. Pensou: “O que faço?”. Passou a atender na clínica estética de uma amiga, entretanto a sala era pequena para a demanda expressiva que tinha. Foi quando, em 2019, surgiu o AC Salão de Beleza, localizado no coração do bairro Mecejana, em Boa Vista, capital de Roraima. Iniciava, assim, uma enorme rede de apoio para outros migrantes venezuelanos.

 

O salão de Armando já empregou 12 pessoas, contudo, devido à crise financeira do Estado, o quadro de funcionários precisou ser reduzido para 8. O empresário lembra que no ano anterior à pandemia de covid-19, de 10 a 15 pessoas batiam à porta do salão todos os dias em busca de emprego. Quando podia, fazia um teste e contratava; quando não tinha como, indicava para outros salões que conhecia, reforçando a rede de apoio em prol de quem mais precisava.

 

“Não faço as coisas esperando algo em troca. Tudo é direcionado por Deus. Digo que no salão eu não sou o dono, sou um trabalhador igual a todos. Quero que aqueles que trabalham comigo, vivam bem, porque encontraram uma boa oportunidade. Para mim não foi fácil, e eles hoje já chegam com clientes, têm agenda fechada, se saírem daqui podem ir para um lugar melhor. Ex-funcionários meus são donos de salão e são gratos pela oportunidade que dei. Uma ex-funcionária se deu muito bem e foi para a Região Sul do Brasil trabalhar na área da beleza. É uma sensação de dever cumprido poder ajudar outras pessoas”, fala Armando Cabrera.

 

Uma vida nova no Brasil

É natural que as primeiras pessoas ajudadas por quem migrou sejam os familiares. No caso de Armando, trabalham com ele a mãe, a irmã, uma cunhada e um irmão. Mas também há outros funcionários fora do círculo familiar, que o jovem considera parte da família pelo tempo em que estão atuando no salão de beleza. A mãe e gerente do salão, Jamileth Gamboa, recorda de ter se assustado com a decisão do filho de migrar, e afirma que apesar de o início ter sido conturbado, o sucesso do empreendimento representa o esforço e a perseverança de Armando.

Jamileth Gamboa mãe de Armando e gerente do salão do filho.

“Quando me disse que viria para o Brasil, eu disse: ‘Está louco?’ Com quem você vai? Depois de ter dito que deu certo, eu chorei muito, e acreditava que tudo estava nas mãos de Deus, porque ele tinha vindo experimentar, era uma realidade muito diferente. Uma língua desconhecida, pessoas que também não conhecíamos. Depois que já estava mais estabilizado, começou a trazer cada um de nós da família, e eu aceitei vir. Eu pensava em trabalhar como professora em Roraima, mas vendo que meu filho precisava de ajuda, decidi ficar com ele. O coração de Armando é muito nobre. Sou grata a Deus pela vida e pelo Brasil ter nos acolhido”, expressou Jamileth.

 

Quem também veio para Roraima para trabalhar com Armando foi a irmã dele, Yoselin Cabrera. O que mais pesou na decisão da jovem em deixar a terra natal foi a filha, na época com apenas um ano de idade. Com a incerteza econômica, ela preferiu migrar para atuar como manicure no salão do irmão, todavia percebeu que não era um serviço do qual se agradava e preferiu aprender as técnicas para os cuidados com os cabelos. Hoje, tem uma vida melhor em Boa Vista graças ao desempenho de Armando que a beneficiou diretamente.

 

Yoselin é irmã de Armando, que abriu salão e a trouxe para trabalhar no Brasil.

“Pensei: ‘Se piorar a situação, como vou cuidar da minha filha?’ E viemos eu, ela e meu esposo. Para a minha filha, o processo de adaptação foi tranquilo, porque veio para o Brasil muito pequena. Quando fomos recentemente para a Venezuela, foi que ela conheceu verdadeiramente o país de onde viemos. No início, meu marido queria voltar, mas hoje está adaptado e não quer mais. Lá, ele trabalhava numa escola e agora tem experiência como sushiman. Não tínhamos uma casa própria, eu morava com minha sogra, não tínhamos nada e conquistamos nossas coisas aqui. Por isso, tudo está melhor. Sou grata pela vida que conseguimos”, revelou.

 

Com o avanço e sucesso do salão de beleza, Armando precisou contratar mais pessoas. É o caso do cabeleireiro e maquiador Juan Hernández, de 25 anos, que relata ter deixado o país em 2018 em busca dos sonhos. No primeiro ano em território brasileiro, não conseguiu trabalho. Pensou em voltar para a Venezuela, mas decidiu ficar e investir em cursos profissionalizantes. Fez 15, para ser mais preciso, nenhum na área da beleza. Durante a crise sanitária do coronavírus, começou a publicar vídeos de automaquiagem nas redes sociais e recebeu uma proposta de emprego, a qual abraçou.

 

“Não tenho vergonha de dizer que minha família passou fome na Venezuela por causa da crise. Cheguei ao Brasil pesando 66 quilos e hoje peso 87. Não se percebe, pois sou alto. Se você vir uma foto minha antes e depois, nota a diferença. Na pandemia, fiz ainda mais e comecei a mexer com cabelo para ter outra fonte de renda. Foi nessa época que conheci Armando, e ele pediu para eu ser modelo de micropigmentação. No salão, trabalhava apenas a irmã dele como cabeleireira, e ele me disse que precisava de outro profissional. Comecei, fui melhorando e hoje me considero um ótimo profissional. Eu tinha saído do salão e voltei agora. Como diz o ditado: ‘Um bom filho à casa torna’”, brincou Juan, que também é drag queen.

 

Transformação de realidade não tem nacionalidade

 

Diferentemente do salão de Armando, onde 100% do quadro de pessoal é formado por migrantes venezuelanos, o estúdio de unhas e cabelos de Luz Mariana tem mais colaboradoras brasileiras do que migrantes. Para ela, não se trata de ajudar locais ou estrangeiros, mas sim pessoas. Com a jovem empreendedora, trabalham seis mulheres, sendo quatro brasileiras e duas venezuelanas. Ela é enfática ao afirmar que nunca esteve nos seus planos empreender no ramo da beleza.

 

“Eu acredito que quando Deus coloca algo na sua vida, Ele vai te encaminhando, mostrando e guiando pelos caminhos que você deve seguir. Às vezes, quis fugir desse caminho. E depois de tantos anos, vejo que esse é meu propósito: ajudar as pessoas. Assim como aconteceu comigo, agora consigo fazer o mesmo, dar oportunidade para quem vai acabar ajudando outros. É uma corrente de amor. Fico feliz e orgulhosa por fazer parte da história delas. Não é sobre brasileiros e venezuelanos: é sobre ajudar pessoas. Sou grata e feliz por, hoje, fazer o que fizeram por mim. É um processo muito lindo!”, reforçou.

 

O salão de Luz também surgiu após uma amiga lhe dar a oportunidade de atuar como manicure no fim de 2015. De cara, percebeu que tiraria de letra, mas notou que era necessário se qualificar. E foi o que fez. Quando retornou à Venezuela meses depois, ainda conseguiu fazer diversos cursos na área da beleza antes de o país se afundar na grave crise econômica. A dedicação exposta nas unhas blindadas, lixadas, desenhadas e pintadas, resultou também em uma lista extensa de clientes, e Luz já não conseguia atender sozinha. Abriu uma empresa com outra amiga e foram empreender no ramo da beleza.

Jovem investiu no ramo da beleza e
tem conquista milhares de clientes.

 

“Quando me mudei, minha mãe veio comigo, porque eu não tinha certeza se ficaria. Ao ganhar dinheiro depois de uma semana de trabalho, eu pensei: ‘Nossa, eu ganhei dinheiro!’. Porque meus pais sempre me deram tudo. Então, ao perceber que tinha capacidade de me manter com meu esforço, decidi ficar. Foi difícil no começo, porque todo trabalho que você inicia, tem que se dedicar. Eu cheguei a oferecer meu serviço na feira. No início, tinha muitas falhas, precisava me aperfeiçoar para ganhar clientes pelo meu trabalho. Viajei para a Venezuela para fazer cursos, porque esse ramo da beleza sempre foi muito forte lá. Isso me ajudou muito a ser reconhecida em Boa Vista”, lembra.

 

Esse reconhecimento vem em números. O salão Unhas da Luz, no bairro São Pedro, em Boa Vista, fez em média, de janeiro a maio deste ano, 400 atendimentos por mês. Ou seja, foram mais de 2,1 mil serviços em cinco meses, sem contar a demanda espontânea que surge sem ser marcada de forma on-line. A rede integrada se estende ainda para um empresário venezuelano, de quem compra todos os produtos do salão. É a própria Luz também quem faz os reels de divulgação. Foi pelas redes sociais, onde acumula quase 100 mil seguidores, que ela anunciou uma vaga de cabeleireiro, preenchida por uma cliente que já frequentava o salão: Nicole Manhabosco, que migrou do Rio Grande do Sul para Roraima.

                                                 

“Quando eu vi que Luz precisava de uma cabeleireira e eu estava voltando do pós-parto, mandei mensagem e ela disse: ‘Vem!’. E foi só acolhimento mesmo, porque no salão não tem aquela coisa de um querer puxar o tapete do outro. É uma família. Se alguma coisa dá errado, nos sentamos e conversamos, e Luz sempre coloca a gente para cima. Muitos lugares focam apenas em empreender, mas não entendem que para um negócio dar certo, o profissional tem que se sentir bem no local de trabalho”, avaliou Nicole, ao acrescentar que, em Roraima, as mulheres investem mais no autocuidado do que no Rio Grande do Sul. “Aqui dá para fazer dinheiro. Estou gostando”, resumiu.

                                                                                                                                                                                                     

Leomaris Gómez foi outra beneficiada por essa rede de suporte para quem migra para o Brasil. A venezuelana chegou ao país assim que a crise se agravou, em 2017, e nunca projetou trabalhar como manicure, profissão à qual se dedica atualmente. Passou por um restaurante e uma fazenda antes de receber o convite da proprietária de um salão.

 

“Minha vida não estava dando certo em Boa Vista e eu quis voltar, foi quando conheci essa moça que me ofereceu trabalho de manicure. Ela fechou o salão e fiquei trabalhando na minha casa, só que não estava dando certo, muitas horas no mesmo ambiente. Um dia, vi que Luz publicou que precisava de uma manicure e eu me candidatei, e aqui estou há três meses. Estou achando ótimo, é muito bom ajudar a melhorar a autoestima das pessoas por meio do meu trabalho. Graças a Deus, consegui muitas coisas a partir do meu emprego”, disse.

 

Processo gratificante

O “AC Salão de Beleza” e o “Unhas da Luz” fazem parte dos diversos empreendimentos de migrantes venezuelanos abertos no Estado. Os números da Junta Comercial de Roraima (JUCERR) revelam este cenário:

 

  • 503 empresas abertas em 2021;
  • 628 empresas abertas em 2022;
  • 704 empresas abertas em 2023; 
  • e 259 empresas abertas até maio de 2024.

 

Apesar de o emprego ser a primeira opção para muitas pessoas que migram, o empreendedorismo pode ser o caminho para a transformação social que esperam. Por isso, diversas organizações do terceiro setor que prestam serviço em Roraima para os estrangeiros oferecem cursos de empreendedorismo em parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas em Roraima (Sebrae-RR).

Sebrae-RR dá suporte para migrantes abrirem suas empresas.

“Temos a nossa legislação que eles precisam conhecer para atuarem de forma legal e organizada. Muitos migrantes nos procuram porque querem empreender, querem mudar suas vidas. O papel do Sebrae-RR é fomentar essas pessoas, repassar o conhecimento necessário para os seus empreendimentos e acompanhá-las para que possam mudar esse cenário onde estão vivendo. Isso contribui não só para elas, mas para a gente, com geração de emprego, renda e o desenvolvimento da economia local. É gratificante ver o migrante atendido por mim aplicar o conhecimento que passei e estar bem hoje em dia”, afirma a analista do Sebrae-RR, Adlany Oliveira.

 

E o desejo daqueles que já vivem no Estado, é permanecer. “Amo Roraima, amo viver aqui. Eu viajo e quando volto e vejo a praça, penso: ‘Cheguei!’. Não penso em voltar para a Venezuela. Roraima é minha casa, porque cheguei com vinte anos, ou seja, metade da minha vida é aqui. Quase nem como comida venezuelana, porque amo as comidas do Brasil”, declara Luz Mariana.